Paulo Freire, aos 75 anos, o educador dos oprimidos
O mestre tem uma estátua numa praça de Estocolmo, Suécia, Muito longe de Casa Amarela, bairro de Recife onde nasceu. E tem também titulo de doutor honoris causa de 28 universidades brasileiras e estrangeiras e livros seus publicados em 35 línguas, até em chinês e grego. Ao ser empurrado para fora da país pela ditatura que a classificara de perigoso subversivo e Ignorante absoluto - o Inquérito policial militar foi arquivado por inépcia da denúncia - não foi Paulo Freire que ganhou o mundo; foi o mundo que ganhou Paulo Freire e sua obra revolucionária: um método de alfabetização para adultos Que levava em conta o homem e seu meio, adotado por nações africanas de língua portuguesa e por países como Chile e Espanha, o primeiro durante o governo de Salvador AIlende, e o segundo no início da era pós-Franco.
Em vez de vovô viu a uva, para o trabalhador Freire ensinava tijolo, fazendo uso de seu instrumento de trabalho; a aula, que mais era uma conversa, ou um teatro simulando situações cotidianas, estimulava o raciocino e o trabalhador misturava as letras, trocava as vogais e conjugava: tu Já lê. A conjugação arrevesada não chegava a ser punida: era maIs um recurso para tentar fazer o analfabeto se comunicar no seu e em outros meios. Freire criticava as professoras por reprovarem os meninos que diziam "a gente cheguemos". Para ele, a sintaxe popular tinha que ser respeitada, sob o risco de a criança, desestimulada, abandonar a escola.
Método começou a ser alinhavado em 1947
Formado em direito e livre docente em história e filosofia da educação, Freire tinha acumulado desde fins dos anos 40 experiências com educação de adultos, em áreas proletárias, urbanas e rurais - em 1947 ele tinha sido procurado por um amigo para ajudar no serviço de aprendizagem do Sesi. Foi quando seu método começou a se delinear. Em 1961, o prefeito Miguel Arraes chamou-o para coordenar em Recife o projeto de educação de adultos, parte do Movimento de Cultura Popular.
Freire ficou à frente do projeto até 1963, período em que fez os arremates de seu método de ensino, que foi aplicado por completo em Angicos, no Rio Grande do Norte, naquele mesmo ano. A experiência chamou a atenção do então ministro da Educação, Paulo de Tarso, que o chamou para coordenar o Programa Nacional de Alfabetização.
O programa durou pouco: o golpe de 1964 levou Freire para uma cela do quartel do Exército, em OIinda, onde ficou 75 dias. Mandaram-no para o Rio de Janeiro, onde foi solto e, a conselho de amigos, pediu asilo na Embaixada da Bolívia e partiu para o exílio. Viveu também no Chile, nos Estados Unidos, na Suíça, na Guiné-Bissau. Em 1970, publicou seu mais famoso livro, "Pedagogia do oprimido". Voltou ao Brasil em 1980 e radicou-se em São Paulo, onde vivia numa casa no bairro do Sumaré. Paulo Freire, ligado ao PT desde sua volta do exilo, foi secretario de Educação de São Paulo, quando Luíza Erundina era prefeita.
Freire ganhou em 1975 o Prêmio Internacional de Educação da Unesco e, em 1995, aos 74 anos, seu primeiro prêmio no Brasil: o Moinho Santista, que dividiu com Celso furtado.
- Não fico besta com uma honraria destas, mas dizer que me entristece seria mentira, pois gosto de me saber vivo - disse na ocasião.
Outras de suas obras são: "A educação como prática da liberdade", "Cartas a Guiné-Bissau", "Ação cultural para a liberdade", "Extensão ou comunicação", "Educação e mudança", "Alfabetização - Leitura do mundo, leitura da palavra", "Medo e ousadia", "Por urna pedagogia da pergunta", entre outras. No ano passado, foi lançado um volume de 766 páginas, reunindo textos de 150 autores sobre ele: "Paulo Freire: uma biobibliografia".
- Não conheço nem 5% do que está escrito lá a meu respeito - disse na época.
O pernambucano Paulo Regis Neves Freire, de 75 anos, morreu ontem, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, de enfarte. Seu corpo está sendo velado no Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Tuca); ele sempre desejou ser velado no teatro onde fez sua primeira conferência na volta do exilio. Será enterrado hoje, às 11h, no Cemitério da Paz, no Morumbi. Ele sofrera uma crise de angina domingo passado e quinta-feira foi internado para fazer exames, mas não resistiu. Tinha cinco filhos e desde 1988 estava casado com a historiadora Ana Maria. Viúvos, se encontraram Já maduros, descobriram o interesse mútuo pela história e pela educação e se apaixonaram.
"Eu não vejo como seja possível alguém se lazer educador sem, na verdade, amar", dizia Freire; a frase foi lembrada por personalidades como o ministro da Cultura, Francisco Weffort - casado com Madalena, filha de Freire - o deputado federal AImino Afonso (PSDB-SP), Luís Inácio Lula da Silva e a ex-prefeita ·Luiza Erundina, que estiveram no velório, e também pejo presidente Fernando Henrique.
Freire dava aulas na PUC de São Paulo. Aos amigos dizia que precisava trabalhar, pois sua aposentadoria era de R$ 700. Freire pretendia em breve mudar-se para os Estados Unidos, onde lecionaria na Universidade de Harvard. E também receberia o titulo de doutor honoris causa da Universidade de Havana; das mãos de Fidel Castro, um de seus grandes desejos.
Fernando Henrique elogia dignidade do educador
Por conta do ministro Welfort, o presidente Fernando Henrique mantinha estreitas relações com toda a família Freire. Ele soube da morte do amigo em Ribeirão Preto e lembrou que esteve exilado com Freire no Chile.
- Acima de tudo, Freire foi um homem de grande dignidade. E exerceu uma posição marcante em certa fase do problema educacional brasileiro - disse.
Emocionada, Luiza Erundina chegou às lágrimas ao falar de seu ex-secretário de Educação;
- Ele era um humanista. Democratizou a escola, criou o conselho de escola, onde pais e alunos pudessem participar da educação. Paulo Freire criou um programa de preparação dos professores para lidar com crianças aidéticas , Isso dois anos antes do caso da menina Sheila, barrada na escola particular por ser soropositiva.
Marta Suplicy, que por meio de Freire Implantou o projeto de orientação sexual nas escolas, cita a visão do educador como seu maior trunfo.
- Ele me chamou para implantar o programa e, para minha surpresa, depois disso, não apenas não houve mais nenhum caso de adolescente grávida entre nossas alunas, como melhorou o desempenho escolar de todos que entraram no programa. Quando comentei Isso com ele; Freire disse que me convidou porque, com a consciência da sexualidade e da saúde, os adolescentes tem uma noção plena de cidadania - disse.
Em Washington, o ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, disse que a morte de Freire era uma grande perda, em especial após a recente morte de Darcy Ribeiro.
- Paulo Freire era o brasileiro mais conhecido e reconhecido Internacionalmente no campo da educação, e aquele que melhor conseguiu aplicar na prática as suas teorias educacionais, proporcionando os melhores resultados. Sua morte é chocante, pois ele estava ativo e vinha tocando vários projetos - disse.
Rosiska Darcy de Oliveira, educadora e presidente do Conselho dos Direitos da Mulher em Brasília, conta que conheceu Freire em 1970, em Genebra, quando estavam no exílio. De Genebra foram para a Guiné-Bissau, onde ficaram cinco anos.
- Paulo tinha muita saudade do Brasil. No exilo, passou pelo Primeiro Mundo, na Universidade de Harvard, da qual foi professor. Ir para a África significou o reencontro com o trabalho numa região multo semelhante ao Brasil. Ele gostava multo de lá; as pessoas, o clima, a comida e principalmente a língua. O contato com o português lhe deu muito prazer. Ele falava um português bonito, cuidadoso, com linguagem poética - lembrou a educadora, contando que Freire recebeu em Genebra o título de doutor honoris causa das mãos de Jean Piaget.
Para o professor e ex-vereador do PT Chico Alencar, Paulo Freire sabia que pedagogia é continuidade:
- Por isso sua contribuição é perene: ele enraizou a compreensão de que a educação das camadas populares é prioritária e de que o ensino tem que estar vinculado com a realidade, pois só assim o saber passa a ter sabor. Por apostar na criatividade do povo e na alegria questionadora das crianças, Paulo Incomodou as elites.
- Paulo Freire foi um apóstolo do bem e da liberdade. Vejo da minha Janela uma revoada de borboletas. Paulo também saiu do casulo; se transformou, não morreu - disse Leonardo Boff sobre a morte do amigo.
Obras de Freire em Harvard emocionaram educadora
Na biblioteca de Harvard, nos EUA, onde fazia seu mestrado; a educadora Regina de Assis se emocionou ao ver prateleiras repletas das obras de Freire.
- Conversei publicamente com Paulo Freire, o mestre do diálogo, ano passado, na Uerj, e após muito debater, concordamos sobre a Importância do uso criterioso das novas tecnologias na educação. Esperava contar com o mestre e amigo para enriquecer a programação do Canal Futura. Mas suas Ideias aí permanecerão vivas - disse ontem a educadora, que foi secretária municipal de Educação e hoje é superintendente do Canal Futura, desenvolvido pela Fundação Roberto Marinho.
- Paulo Freire foi quem primeiro transformou a educação num grande debate nacional. Educação e comunicação: foi a sua arte maior. A Fundação Roberto Marinho perde um colaborador critico e eu perco um amigo - disse Joaquim Falcão, secretário-geral da Fundação Roberto Marinho.
FRASES DE FREIRE
"Não há evasão escolar. A palavra evasão é puramente ideológica. As crianças são expulsas da escola pelo descaso dos governos, pelo despreparo científico dos professores e pela ideologia elitista das escolas brasileiras"
"Sempre acreditamos que tínhamos algo a permutar com o povo, nunca exclusivamente a oferecer-lhe "
"O analfabetismo era uma castração dos homens e das mulheres; uma proibição da sociedade organizada às classes populares"
"O Estado não pode cobrar dos educadores competência e rigorosidade se não os paga bem"
"No neoliberalismo, a grande tarefa da educação seria o treino técnico e científico do aluno, para dar-lhe uma utilidade, uma sobrevivência, uma profissão. É o esgotamento trágico da educação"
"O analfabetismo no Brasil poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. Faltou foi decisão política"
Paulo Freire: A leitura do mundo
Frei Beto
"Pedro viu a uva", ensinavam os manuais de alfabetização. Mas o professor Paulo Freire, com o seu método de alfabetizar conscientizando, fez adultos e crianças, no Brasil e na Guiné-Bissau, na índia e na Nicarágua, descobrirem que Pedro não viu apenas com os olhos. Viu também com a mente e se perguntou se uva é natureza ou cultura.
Pedro viu que a fruta não resulta do trabalho humano. É Criação, é natureza, Paulo Freire ensinou a Pedro que semear uva é ação humana na e sobre a natureza. "É a mão, multiferramenta, despertando as potencialidades do fruto, Assim como o próprio ser humano foi semeado pela natureza em anos de evolução do Cosmo.
Colher uma uva, esmagá-la e transformá-la em vinho é cultura, assinalou Paulo Freire. O trabalho humaniza a natureza e, ao realizá-lo, o homem e a mulher se humanizam. Trabalho que instaura o nó de relações, a vida social. Graças ao professor, que iniciou sua pedagogia revolucionária com operários do Senai de Pernambuco, Pedro viu também que a uva é colhida por boias-frias, que ganham pouco, e comercializada por atravessadores, que ganham melhor.
Pedro aprendeu com Paulo que, mesmo sem ainda saber ler, ele não é uma pessoa Ignorante. Antes de aprender as letras, Pedro sabia erguer uma casa, tijolo a tijolo. O médico, o advogado ou o dentista, com todo o seu estudo, não era capaz de construir como Pedro. Paulo Freire ensinou a Pedro que não existe ninguém mais culto do que o outro, existem culturas paralelas, distintas, que se complementam na vida social.
Pedro viu a uva e Paulo Freire mostrou-lhe os cachos, a parreira, a plantação inteira. Ensinou a Pedro que a leitura de um texto é tanto melhor compreendida quanto mais se insere o texto no contexto do autor e do leitor. É dessa relação dialógica entre texto no contexto que Pedro extrai o pretexto para agir. No inicio e no fim do aprendizado é a práxis de Pedro que Importa. Práxis-teoria-práxis , num processo indutivo que torna o educando sujeito histórico.
Pedro viu a uva e não viu a ave que, de cima, enxerga a parreira e não vê a uva. O que Pedro vê é diferente do que vê a ave. Assim, Paulo Freire ensinou a Pedro um princípio fundamental da epistemologia: a cabeça pensa onde os pés pisam. O mundo desigual pode ser lido pela ótica do opressor ou pela ótica do oprimido. Resulta uma leitura tão diferente uma da outra como entre a visão de Ptolomeu, ao observar o sistema solar com os pés na Terra, e a de Copérnico, ao Imaginar-se com os pés no Sol.
Agora Pedro vê a uva, a parreira e todas as relações sociais que fazem do fruto festa no cálice de vinho, mas Já não vê Paulo Freire, que mergulhou no Amor na manhã de 2 de maio. Deixa-nos uma obra Inestimável e um testemunho admirável de competência e coerência.
Paulo deveria estar em Cuba, onde receberia o titulo de doutor honoris causa, da Universidade de Havana. Ao sentir dolorido seu coração que tanto amou, pediu que eu fosse representá-lo. De passagem marcada para Israel, não me foi possível atendê-lo. Contudo, antes de embarcar fui rezar com Nita, sua mulher, e os filhos, em torno de seu semblante tranquilo: Paulo via Deus.
FREI BETO é escritor, autor, em parceria com Paulo Freire, de "Essa escola chamada Vida" (Ática)